Dia 3
De manhã: chai!
O frio estava intenso de manhã
cedo. Acordamos ás 5h porque o dia de trekking seria longo e puxado, sairíamos
dos mil e pouquinhos metros de altitude para chegar ao topo do Chowpta com seus
4.100 metros.
Meus joelhos começaram a doer
muito logo de manhã, talvez pelo frio. Sim, agora eram os dois. Eles intercalam
em atrapalhar minha vida aventura, e nessa manhã os dois estavam doloridos.
Fiquei com vontade de chorar, não pela dor, por medo de não dar conta de subir.
Porque esse era um dia muito esperado na minha vida e o mais esperado da viagem
toda. Ia ser o cume mais alto que eu já teria conquistado até o momento e o dia
do meu tão sonhado trekking na Cordilheira do Himalaia.
As francesas acordaram nesse
momento me perguntaram o que acontecia. Eu expliquei bem simplificadamente e
Maud lembrou-me uma frase que eu já ouvira varias vezes, principalmente do
Flávio, meu querido professor de montanha. Ela me disse num inglês com o lindo
sotaque francês: ‘Se você não conseguir subir, não tem problema, a montanha vai
continuar por lá, outra vez você termina’.
Eu vesti a humildade que essa
frase transmite, vesti também minha roupa de trekking e saí pra geladeira lá de
fora.
Boss arregou, disse que
acordou resfriado, mas na noite anterior dava pra perceber a exaustão do
coitado. Ele não costumava muito fazer as trilhas, mas em janeiro ia pra
Tailandia (quer dizer, queria ir, mas não foi) e talvez estivesse tentando
ficar em forma. Não foi uma escolha sábia. Somente Mogli subiu conosco.
Fomos de carro até o local de
saída. Tomamos mais um chai no dhaba* que tinha em frente e pé na estrada pra
começar a subida.
No começo eram escadas e
rampas de pedra, ambos bem acentuados, mas Mogli nos fazia ‘cortar caminho’ pra
deixar tudo com mais emoção.
Começo da
trilha. Foto: Michelle Beralde
Desde o primeiro passo eu ia
pedindo ás entidades espirituais em que acredito pra que me ajudassem a não
sentir dor e pra me levar ao cume. Pedi até ao todo poderoso Shiva de Mogli.
Acredito que eles me ouviram. Depois de uma hora e meia de subida eu estava sem
dor alguma, já um pouco ofegante, mas os joelhos estavam muito bem.
A subida era bem íngreme e o
pior pra mim naquele dia era os três palmos de neve que eu e minha botinha
singela da Quechua tivemos que encarar. Os europeus subiam de boa, deslizando
na neve. Já eu parecia o pé grande andando na Lua. Foi um bom exercício pras
panturrilhas pelo menos.
Daquelas fotos
que você sempre sonhou em tirar e que um dia conseguiu realizar. Foto: Joshua
Frank
Durante o caminho, algumas
fotos e só duas ou três paradas para descansar. O trekking desse dia era bem
diferente do anterior, onde a maioria do trecho era percorrida dentro da mata,
nesse dia era só subida de uma montanha coberta de neve com os tufos de plantas
teimosas que insistiam em crescer naquele lugar apesar das condições adversas.
Na India, como na Ásia em
geral, a religião é o carro forte da cultura deles e nada faz sentido se não
for conectado com o divino. Essa trilha que fazíamos, meus caros senhores, era
feita desde os primórdios pelos monges indianos, tibetanos e nepaleses. Idosos
de mais de 60 anos subiam e desciam grandes montanhas, sempre consideradas um
lugar sagrado, para rezar, meditar e encontrar com o divino nos altos cumes.
Então durante o caminho
cruzamos com vários templos dedicados a Shiva, muito consagrado naquela região.
Diz a lenda que Shiva, que carregava o rio Ganges na sua cabeça, para proteger
o mundo das cheias e para diminuir a força destrutiva do Rio, ele permitiu que
o rio escorresse dos cabelos compridos dele. Os templos eram seculares e
maravilhosos, a maioria era adornado de vermelho, cor poderosa como Ele, com vários
sinos pendurados, flores laranjas e restos de frutas que eles oferecem aos
deuses como oferenda, o Puja.
Ohm Namah
Shiva! Templo de Shiva há muitos mil metros de altitute. Foto: Michelle Beralde
No templo maior paramos para
descansar e receber uma benção de Mogli. Foi outro dos momentos mágicos dessa
expedição. Ele nos fez reunir em círculo com as palmas das mãos unidas na
altura do peito e repetíamos (ou tentávamos repetir) a oração que ele fazia em
sânscrito. Depois do transe em que nos colocou, ele badalou o sino maior e nos
fez voltar ao planeta Terra.
Queria eu
carregar dentro de mim, pra onde quer que fosse, a paz que só encontro nas
montanhas. Foto: Joshua Frank
Seguimos então para o trajeto
final e depois do trecho mais íngreme de todos e de muitos palmos de neve,
atingimos o cume por volta das 13 horas.
Trecho
final. Eu, Mimi e Maud. Foto: Joshua Frank
Chegada ao
cume. Foto: Eu mais uma vez
O alemão não estava bem,
talvez pela falta de costume, ele sofreu bastante com mal de altitude. Chegou
ao cume, deitou no chão sob o sol forte e apagou, só acordou pra tirar foto.
Nós comemos uns chapattis, bolachinha com Nutella, tomamos chai, Mogli acendeu
seu ‘incenso’ de Shiva do tamanho de um charuto e tiramos fotos.
A alegria da conquista é uma sensação
interessante. Você se sente completo por ter conquistado algo tão almejado, de
difícil realização, sente um êxtase sem tamanho, sem definição, que toma seu
corpo, mente e alma por completo. Mas eis que surgem dois problemas. Pelo menos
pra mim, esse sentimento é viciante e efêmero. Pois é, depois de passado o
efeito dessa droga na qual sou viciada, vem a precoce abstinência. Meu começo
de descida já era planejando a próxima viagem, o próximo cume. Como farei pra
chegar lá? Onde será? Quando será?
É, esse é um caminho sem volta
e um vício que eu faço questão de nunca largar.
‘Jogando meu
corpo no mundo.’ Foto: Joshua Frank
Na descida os europeus
plainavam na neve, descendo rápido com pés de esqui enquanto eu estava com a
roupa toda molhada de tanto cair na neve. Bom, foi razoável para uma primeira
vez de trekking na neve...
Chegamos ao fim ás 15h e
pouco, a descida foi bem rápida. Quando passei o arco que marcava o inicio da
trilha, não consegui não chorar, o arco que algumas horas atrás eu passara no
sentido contrario, super insegura, com imenso medo de meu corpo não acompanhar
o desejo da minha mente.
Mas tudo deu certo, eu subi,
eu desci, e acredito muito na ajuda metafísica que eu tive.
Voltamos para o abrigo de montanha para pegar as coisa e partir. Dormiríamos no hotel do restaurante onde almoçamos no primeiro dia de viagem. A ideia foi boa, pois o lugar era menos gelado e aparentemente mais confortável.
Voltamos para o abrigo de montanha para pegar as coisa e partir. Dormiríamos no hotel do restaurante onde almoçamos no primeiro dia de viagem. A ideia foi boa, pois o lugar era menos gelado e aparentemente mais confortável.
Na saída jogamos um pouco de cricket
com os guardas do abrigo. Pra quem não sabe o cricket é pros indianos o que o
futebol é para os brasileiros, a paixão nacional.
‘Pelada de
Cricket’ Foto: Michelle Beralde com as mãos congelando de frio
Chegamos ao hotel já estava
escuro, entramos no quarto. Quarto bonitinho, pintadinho de amarelo, cortinas
bonitas, poltronas de almofada, penteadeira, chuveiro quente (não sabia o que
era isso desde que saí de Rishikeshi), tudo perfeitinho se não fosse por um
‘detalhe’: o quarto estava salpicado de coco de rato. Parecia que moravam todos
os ratos do mundo naquele quarto. Era coco em cima da cama, do travesseiro, da
cortina, da poltrona, no chão, debaixo da cama, em cima da mesinha, da
penteadeira. Alguém devida ter enchido um saleiro gigante de bosta de rato e
jogado naquele hotel. Eu desacreditei. A
camada de ‘chocolate granulado’ cobria o quarto todo. E eu não estou exagerando
dessa vez.
O meu cansaço me impediu de
protestar, sacudi a colcha, fui tomar um banhozinho e comer....
Fomos jantar, de sobremesa:
chá de gengibre com mel pra tirar o resfriado. E depois de cumprida minha cota diária
de socialização, fui pro quarto. Assim que eu abri a porta duas ratazanas
gigantes cruzaram o quarto procurando refugio em algum lugar. Dessa vez, fui
calmamente falar com os guias (mentira, surtei de novo de susto). Joshua veio
pra me ajudar, pedi pra ele pelo menos tirar os ratos do quarto. Ele entrou
olhou, disse que não tinha rato nenhum. Eu, de pé cima da poltroninha, falava
que tinha rato lá dentro. Ele não achou e ainda quis tirar uma foto do momento,
que para ele estava sendo cômico.
Eu, como uma dama que sou,
desci da poltrona e dei uma bica gigante na cama que fez estremecer o quarto.
Daí os infelizes saíram de lá e ainda por cima um deles passou em cima da minha
bota. E eles estavam indignados comigo por ter nojo de rato e eu com eles por
eles não terem. Perguntei pra francesa se ela REALMENTE não se importava com os
ratos e ela disse que não, que cresceu na fazenda e o quarto dela vivia cheio
deles.
A manha de uma menininha com
sono tomou conta do meu ser e disse pra eles que eu não ia dormir lá. Pedi pra
domir no jeepe, eles não deixaram porque disseram que faz muito frio . Disseram
que iam trocar eu o Joshua de quarto. Fomos pro quarto ao lado, mas estava a
mesma coisa só que piorada. Disse pra voltarmos pro mesmo quarto porque lá pelo
menos eu tinha visto que os ratos tinham saído. Se não fosse pelo cansaço
extremo eu jamais teria conseguido dormir aquela noite. Cobri todas as entradas
com as almofadas das poltronas, peguei o saco de dormir, me encapotei toda
deixando só o espaço do buraco do nariz para efetuação das tão necessárias
trocas gasosas, fiz novamente minha trincheira de travesseiros em volta da
minha cabeça, dessa vez maior e antes de colocar a cabeça no travesseiro,
dormi.
O ataque
dos ratos assassinos. Foto: Obviamente, Joshua