sábado, 18 de maio de 2013

Dia três. O cume


Dia 3
De manhã: chai!
O frio estava intenso de manhã cedo. Acordamos ás 5h porque o dia de trekking seria longo e puxado, sairíamos dos mil e pouquinhos metros de altitude para chegar ao topo do Chowpta com seus 4.100 metros.
Meus joelhos começaram a doer muito logo de manhã, talvez pelo frio. Sim, agora eram os dois. Eles intercalam em atrapalhar minha vida aventura, e nessa manhã os dois estavam doloridos. Fiquei com vontade de chorar, não pela dor, por medo de não dar conta de subir. Porque esse era um dia muito esperado na minha vida e o mais esperado da viagem toda. Ia ser o cume mais alto que eu já teria conquistado até o momento e o dia do meu tão sonhado trekking na Cordilheira do Himalaia.
As francesas acordaram nesse momento me perguntaram o que acontecia. Eu expliquei bem simplificadamente e Maud lembrou-me uma frase que eu já ouvira varias vezes, principalmente do Flávio, meu querido professor de montanha. Ela me disse num inglês com o lindo sotaque francês: ‘Se você não conseguir subir, não tem problema, a montanha vai continuar por lá, outra vez você termina’.
Eu vesti a humildade que essa frase transmite, vesti também minha roupa de trekking e saí pra geladeira lá de fora.
Boss arregou, disse que acordou resfriado, mas na noite anterior dava pra perceber a exaustão do coitado. Ele não costumava muito fazer as trilhas, mas em janeiro ia pra Tailandia (quer dizer, queria ir, mas não foi) e talvez estivesse tentando ficar em forma. Não foi uma escolha sábia. Somente Mogli subiu conosco.
Fomos de carro até o local de saída. Tomamos mais um chai no dhaba* que tinha em frente e pé na estrada pra começar a subida.
No começo eram escadas e rampas de pedra, ambos bem acentuados, mas Mogli nos fazia ‘cortar caminho’ pra deixar tudo com mais emoção.
Começo da trilha. Foto: Michelle Beralde
Desde o primeiro passo eu ia pedindo ás entidades espirituais em que acredito pra que me ajudassem a não sentir dor e pra me levar ao cume. Pedi até ao todo poderoso Shiva de Mogli. Acredito que eles me ouviram. Depois de uma hora e meia de subida eu estava sem dor alguma, já um pouco ofegante, mas os joelhos estavam muito bem.
A subida era bem íngreme e o pior pra mim naquele dia era os três palmos de neve que eu e minha botinha singela da Quechua tivemos que encarar. Os europeus subiam de boa, deslizando na neve. Já eu parecia o pé grande andando na Lua. Foi um bom exercício pras panturrilhas pelo menos.
Daquelas fotos que você sempre sonhou em tirar e que um dia conseguiu realizar. Foto: Joshua Frank
Durante o caminho, algumas fotos e só duas ou três paradas para descansar. O trekking desse dia era bem diferente do anterior, onde a maioria do trecho era percorrida dentro da mata, nesse dia era só subida de uma montanha coberta de neve com os tufos de plantas teimosas que insistiam em crescer naquele lugar apesar das condições adversas.
Na India, como na Ásia em geral, a religião é o carro forte da cultura deles e nada faz sentido se não for conectado com o divino. Essa trilha que fazíamos, meus caros senhores, era feita desde os primórdios pelos monges indianos, tibetanos e nepaleses. Idosos de mais de 60 anos subiam e desciam grandes montanhas, sempre consideradas um lugar sagrado, para rezar, meditar e encontrar com o divino nos altos cumes.
Então durante o caminho cruzamos com vários templos dedicados a Shiva, muito consagrado naquela região. Diz a lenda que Shiva, que carregava o rio Ganges na sua cabeça, para proteger o mundo das cheias e para diminuir a força destrutiva do Rio, ele permitiu que o rio escorresse dos cabelos compridos dele. Os templos eram seculares e maravilhosos, a maioria era adornado de vermelho, cor poderosa como Ele, com vários sinos pendurados, flores laranjas e restos de frutas que eles oferecem aos deuses como oferenda, o Puja.
Ohm Namah Shiva! Templo de Shiva há muitos mil metros de altitute. Foto: Michelle Beralde
No templo maior paramos para descansar e receber uma benção de Mogli. Foi outro dos momentos mágicos dessa expedição. Ele nos fez reunir em círculo com as palmas das mãos unidas na altura do peito e repetíamos (ou tentávamos repetir) a oração que ele fazia em sânscrito. Depois do transe em que nos colocou, ele badalou o sino maior e nos fez voltar ao planeta Terra.
Queria eu carregar dentro de mim, pra onde quer que fosse, a paz que só encontro nas montanhas. Foto: Joshua Frank
Seguimos então para o trajeto final e depois do trecho mais íngreme de todos e de muitos palmos de neve, atingimos o cume por volta das 13 horas.
Trecho final. Eu, Mimi e Maud. Foto: Joshua Frank
Chegada ao cume. Foto: Eu mais uma vez
O alemão não estava bem, talvez pela falta de costume, ele sofreu bastante com mal de altitude. Chegou ao cume, deitou no chão sob o sol forte e apagou, só acordou pra tirar foto. Nós comemos uns chapattis, bolachinha com Nutella, tomamos chai, Mogli acendeu seu ‘incenso’ de Shiva do tamanho de um charuto e tiramos fotos.
 A alegria da conquista é uma sensação interessante. Você se sente completo por ter conquistado algo tão almejado, de difícil realização, sente um êxtase sem tamanho, sem definição, que toma seu corpo, mente e alma por completo. Mas eis que surgem dois problemas. Pelo menos pra mim, esse sentimento é viciante e efêmero. Pois é, depois de passado o efeito dessa droga na qual sou viciada, vem a precoce abstinência. Meu começo de descida já era planejando a próxima viagem, o próximo cume. Como farei pra chegar lá? Onde será? Quando será?
É, esse é um caminho sem volta e um vício que eu faço questão de nunca largar.
‘Jogando meu corpo no mundo.’ Foto: Joshua Frank
Na descida os europeus plainavam na neve, descendo rápido com pés de esqui enquanto eu estava com a roupa toda molhada de tanto cair na neve. Bom, foi razoável para uma primeira vez de trekking na neve...
Chegamos ao fim ás 15h e pouco, a descida foi bem rápida. Quando passei o arco que marcava o inicio da trilha, não consegui não chorar, o arco que algumas horas atrás eu passara no sentido contrario, super insegura, com imenso medo de meu corpo não acompanhar o desejo da minha mente.
Mas tudo deu certo, eu subi, eu desci, e acredito muito na ajuda metafísica que eu tive.
Voltamos para o abrigo de montanha para pegar as coisa e partir. Dormiríamos no hotel do restaurante onde almoçamos no primeiro dia de viagem. A ideia foi boa, pois o lugar era menos gelado e aparentemente mais confortável.
Na saída jogamos um pouco de cricket com os guardas do abrigo. Pra quem não sabe o cricket é pros indianos o que o futebol é para os brasileiros, a paixão nacional.
‘Pelada de Cricket’ Foto: Michelle Beralde com as mãos congelando de frio
Chegamos ao hotel já estava escuro, entramos no quarto. Quarto bonitinho, pintadinho de amarelo, cortinas bonitas, poltronas de almofada, penteadeira, chuveiro quente (não sabia o que era isso desde que saí de Rishikeshi), tudo perfeitinho se não fosse por um ‘detalhe’: o quarto estava salpicado de coco de rato. Parecia que moravam todos os ratos do mundo naquele quarto. Era coco em cima da cama, do travesseiro, da cortina, da poltrona, no chão, debaixo da cama, em cima da mesinha, da penteadeira. Alguém devida ter enchido um saleiro gigante de bosta de rato e jogado naquele hotel. Eu desacreditei.  A camada de ‘chocolate granulado’ cobria o quarto todo. E eu não estou exagerando dessa vez.
O meu cansaço me impediu de protestar, sacudi a colcha, fui tomar um banhozinho e comer....
Fomos jantar, de sobremesa: chá de gengibre com mel pra tirar o resfriado. E depois de cumprida minha cota diária de socialização, fui pro quarto. Assim que eu abri a porta duas ratazanas gigantes cruzaram o quarto procurando refugio em algum lugar. Dessa vez, fui calmamente falar com os guias (mentira, surtei de novo de susto). Joshua veio pra me ajudar, pedi pra ele pelo menos tirar os ratos do quarto. Ele entrou olhou, disse que não tinha rato nenhum. Eu, de pé cima da poltroninha, falava que tinha rato lá dentro. Ele não achou e ainda quis tirar uma foto do momento, que para ele estava sendo cômico.
Eu, como uma dama que sou, desci da poltrona e dei uma bica gigante na cama que fez estremecer o quarto. Daí os infelizes saíram de lá e ainda por cima um deles passou em cima da minha bota. E eles estavam indignados comigo por ter nojo de rato e eu com eles por eles não terem. Perguntei pra francesa se ela REALMENTE não se importava com os ratos e ela disse que não, que cresceu na fazenda e o quarto dela vivia cheio deles.
A manha de uma menininha com sono tomou conta do meu ser e disse pra eles que eu não ia dormir lá. Pedi pra domir no jeepe, eles não deixaram porque disseram que faz muito frio . Disseram que iam trocar eu o Joshua de quarto. Fomos pro quarto ao lado, mas estava a mesma coisa só que piorada. Disse pra voltarmos pro mesmo quarto porque lá pelo menos eu tinha visto que os ratos tinham saído. Se não fosse pelo cansaço extremo eu jamais teria conseguido dormir aquela noite. Cobri todas as entradas com as almofadas das poltronas, peguei o saco de dormir, me encapotei toda deixando só o espaço do buraco do nariz para efetuação das tão necessárias trocas gasosas, fiz novamente minha trincheira de travesseiros em volta da minha cabeça, dessa vez maior e antes de colocar a cabeça no travesseiro, dormi.
O ataque dos ratos assassinos. Foto: Obviamente, Joshua

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Segundo dia. Da neve, do urso e do rato

Dia 2
De manhã: Chai!

Já tinha somado muitas noites de pouco sono com toda a história do ônibus fantasma saindo de Delhi (um dia eu conto essa historia de terror indiana), da noite de arrumação de mala pro trekking em Rishikesh e da madrugada negativa no acampamento base um.  Então mesmo após a deliciosa surpresa estrelada da madrugada fria no primeiro dia, acordei moída. E pra dificultar já comecei o dia com o joelho doendo.
Mas a cordilheira do Himalaia estava ali toda banhada em neve, na minha frente, pronta para mais um dia de trekking, forcei um bom humor e fui tomar café pra começar a desmontar a barraca.
O Joshua encontrou um casal de alemães que estava alguns dias acampados por lá onde dormimos e pretendiam também fazer a rota que nos levaria até o cume do Chowpta. Porém, segundo o Joshua, eles começaram no dia anterior a trilha mas na metade do caminho, voltaram. Começaram a ouvir um som de urso muito próximo a eles e, como estavam sem guia, decidiram voltar e esperar alguns dias pra recomeçar.
Maud, Mimi, Joshua e eu com tudo pronto pra subir.
Foto: Mogli e sua dificuldade em deixar o horizonte na horizontal

E com essas palavras muito motivadoras começamos a trilha do dia. Eu intercalava com Mimi, em ser a última do grupo por conta do meu joelho dolorido. Mas como o meu mestre de montanhismo, Flávio Berchez me ensinou: ‘Deixe a montanha ditar seu ritmo’ E era o que eu estava fazendo e foi isso o que me fez chegar aos 4.100 metros de altitude no ultimo dia.
Um dos guias era Bittu, que apelidei de Mogli por conta da história que ele me contou de quando morou sozinho na floresta dos 10 aos 11 anos de idade porque quis fugir da escola. Sobreviveu todo esse tempo longe da civilização e se alimentando do que caçava e contou com a ajuda de Shiva (Não, não é um cão, muito menos um lobo. Shiva é um dos mais poderosos deuses do hinduísmo. Ele é o deus da destruição e quando ele abrir o seu terceiro olho que fica no centro da testa, o mundo se destruirá!). Bom, apesar dessa mirabolante historia, dava pra ver que ele era um homem da montanha, tanto pela sua estrutura física, coragem e habilidades quanto pelo brilho no olho dele toda vez que ele olhava para cima, em direção ao cume. Ele foi a minha companhia principal. O alemão com toda sua disposição de iniciante no montanhismo seguia como se estivesse disputando corrida com alguém, embora eu dissesse pra ele ir mais devagar, porque não é bem assim que funciona em grandes altitudes. Maud era experiente em montanhas e seguia atrás dele. Mimi já era meio termo e o outro guia Shivam, que eu apelidei de Boss porque ele era o filho do chefe da companhia de trekking, seguia morrendo devido a sua total falta de condicionamento físico.
Eu fui no mesmo ritmo desde o primeiro passo até o ultimo e na maioria do tempo ficava atrás, não me importava e até preferia. E o Mogli me acompanhou a maior parte do tempo. Ele me contou outras historias de como quando teve o coração partido por uma francesa e decidiu estudar para virar guru. Ele disse que  durante seu treinamento teve total dedicação, mas teve que abandonar porque percebeu ser incapaz de controlar o segundo chakra, Svadhisthana. Pra quem não sabe esse é o chakra sexual. Mogli disse que as estrangeiras ‘gostavam’ demais dele e ele tinha dificuldades em contrariá-las. Ele então desistiu da vida celibata de guru e voltou a ser guia de montanha.
No total do segundo dia foram 16 km de subida e descida, subida e descida, subida e descida. Passamos por abismos de mais de 2.000 metros de altura, pegadas de urso ‘frescas’, rios congelados, águias brincando no céu e neve, muita neve. Não cruzamos com nenhuma outra equipe. Ninguém. Nenhum outro ser humano.
Um lugar ao Sol pro almoço. Mogli cozinhando um miojão no fogão improvisado com pedras. Foto: Eu de novo

Depois de um breve descanso durante o almoço, voltamos à rota. Tudo estava normal até começarmos a escutar um barulho estranho muito próximo. Eu pensei com meus botões: ‘Nossa, coitado desse cachorro, que será que deve estar havendo?’. Daí olhei pro lado e vi Mogli, um típico indiano com uma típica cor indefinida de indianos, ficar branco igual a neve que nos cercava. E ainda sem entender o que estava acontecendo perguntei o que houve. Numa voz meio rouca Boss disse que era som de urso. Na minha inocência eu achei super legal, mas o resto da galera não gostou muito. Mogli disse que agora devíamos caminhar juntos no mesmo ritmo para caso acontecesse alguma coisa, nós teríamos como intimidá-lo.
Nesse momento estávamos há mais ou menos 3.000 metros de altitude, no meio de um mar de montanhas em neve e longe um bocado de qualquer outro tipo de ser humano e estruturas que possam parecer um hospital. Quando pensei nisso, deixei de achar divertido ter um urso na nossa cola. Tratei de andar mais rápido.
Patinha cuti-cuti do urso que estava na nossa cola. Foto: Michelle Beralde

Ainda eram 16 horas e o frio da Cordilheira começou a ganhar forças. Os guias nos chamaram e disseram que por conta da desfavorável temperatura e por questão de segurança tinham que cortar um pedaço do trajeto e iriam contatar o motorista para irmos para um abrigo de montanha. Desviaríamos só um pouco da nossa rota para chegar até a estrada de acesso. O único problema era o carro chegar até lá, já que existia a possiblidade da estrada estar congelada e o carro voar em um dos abismos. Por mais que eu tenha o espírito perrengueiro de aventureiros, o frio extremamente desconfortável da noite anterior me fez desejar um pouco de calor.
Por fim, eles conseguiram checar a estrada e contatar o motorista. E por volta das 17h30 estávamos indo para o abrigo. O carro, um jeep Mahindra, muito usado na Índia, não estava cheio, mas eu fiz questão de subir as escadinhas e ir na parte de cima do carro.
Pra mim uma das melhores sensações é o vento batendo no rosto, costumo chamar de degustação de liberdade, porque me sinto plena, realizada e ridiculamente feliz. Tipo a mesma coisa que seu cachorro deve sentir quando põe a cabeça pra fora do carro de fica com a língua de fora e olhos fechados.
Bom, talvez por instinto masculino protetor, Joshua e Shivam também quiseram ir. O caminho foi curto, mas intenso. Os rios invadiam a pista bem nas curvas e por conta do frio eles viravam pistas de gelos. Bem nas curvas! E a cada uma delas era um frio na barriga maior do que o da descida do barco Viking.
Eu, Joshua, Boss e o Mahindra. Foto: Algúem com a Nikon do Joshua

Logo chegamos ao abrigo de montanha. Era um lugar era bem rústico com aquele clima de lugar montanhesco, como me gusta. A parede do quarto devia ter no mínimo meio metro de espessura pra dar conta de não deixar o frio entrar, as camas tinham três colchões, que juntos ficavam da mesma espessura da parede, e os cobertores eram quase da espessura do colchão. Tudo velho, manchado e cheirando estranho, mas perfeito para uma noite protegida de frio e de ursos. Bom, era o que eu pensava naquele momento.
Paisagem ‘humilde’ da parte de trás do nosso abrigo. Foto: Michelle Beralde

Comemos em volta da fogueira jogando baralho. Estava uns 7 graus negativos e as pessoas usavam muita roupa de frio.
Eu não!
‘Muita roupa de frio’ não se encaixa na minha classificação. Eu estava vestindo todas as roupas que levei, roupas boas, roupas de montanha. Mais: um sobre-tudo de lã de yak que era de um dos guardas da casa (Boss, com pena da minha tremedeira, pediu para eles me emprestarem um), duas luvas, três meias, um gorro, dois cachecóis e óculos de Sol.
Sim, óculos de Sol!
Eu sentia que meus globos oculares iam congelar com o vento, decidi que seria então super sensato eu usar óculos de Sol as 21h da noite.
Depois de um tempo desisti de fazer social e fui deitar debaixo dos cobertores-colchões. Tentei escrever um pouco, mas não era fácil segurar a caneta com tantas camadas de lã envolvendo meus dedos.
Deitei. Fechei o olho. Respirei aquele ar de alívio e conforto. E ouvi um grunhido. Abri o olho. E lá estava ele. Em cima do travesseiro do Joshua, há dois palmos do meu nariz. Um rato.
Ainda não sei o que foi que o fez desaparecer em 1 milésimo de segundo: o meu salto acrobático da cama ou o meu grito super-sônico.
Saí do quarto berrando, com o coração batendo no céu da minha boca, chamando os meninos. Eles vieram mais que depressa e perguntaram o que tinha acontecido, e eu gaguejando no inglês (em horas de pânico parece que só sua língua nativa lhe cabe á boca) explique do rato e eles olharam pra mim, me analisando, pra ver se eu estava falando sério ou se era alguma pegadinha. Alguns segundos depois eles riram, riram alto como se eu tivesse contado uma piada vencedora de concurso.

Abro aqui um parêntese:
Sim, eu sou bióloga, mas sou mulher. Eu tenho aflição de ratos e pânico de baratas. Não me importo em tocar em aranhas caranguejeiras, cobras peçonhentas, sapo, tigres, lagartos e lagartixas, nem nenhum outro bicho também. Meu problema é com ratos e baratas. Ah... tem carrapato também. Mas só esses três mesmo. Tudo bem que tem pessoas que não se importam com ratos, como os quase um bilhão e meio de indianos desse planeta e os europeus que estavam na expedição, mas quando se trata de uma ratazana no travesseiro ao lado da sua cabeça, achei que um pequeno escândalo fosse justificável.
Fecho meu parêntese.

Bittu deu uma olhada de 5 segundos no quarto e falou que o rato foi embora, como um pai que fala pro filho que não tem monstro nenhum debaixo da cama.
Dei uma olhada geral também, bati nos móveis e tapei o buraco no chão que os indianos chamam de vaso sanitário, fiz uma trincheira de travesseiros e capotei.
Acordei a noite com uma pedra de gelo vindo deitar na cama. Acho que o Joshua estava com a mesma falta de graus Celsius do que a noite lá fora e o coitado tremia que nem vara verde. Depois de estabilizada a temperatura, conseguimos dormir.

domingo, 21 de abril de 2013

Primeiro Trekking na Cordilheira do Himalaia. Um sonho. Um desafio. (Parte I)


Foram muitas as venturas e desventuras que eu vivi por aquele pedaço do continente asiático, que, pelo tamanho e pela carga de singularismos, deveria ser considerado como um continente todo.
O melhor sempre fica pro fim, então vou começar contando a experiência vivida na minha primeira, mas não única, viagem ao planeta Índia.
Como mochileira meu sonho era ir à Índia e como montanhista meu sonho era conhecer o Himalaia (ainda não consigo pronunciar essa palavra sem dar um sorriso torto ou me arrepiar toda). E depois de quatro curtos meses por aquelas terras ,foi lá que eu fechei com chave de platina (porque ouro não é o suficiente) meu destino final.
Peguei o pacote de quatro dias de expedição com Joshua, um alemão friamente-típico que eu conheci durante o intercambio e com quem eu compartilhei toda minha Índia. Depois de rodarmos Rishikesh em busca de alguma companhia de trekking que já tivesse um grupo de pessoas para a expedição, encontramos uma que havia já duas garotas francesas, Mimi e Maud. A busca não foi fácil, pois começava o inverno intenso da Cordilheira do Himalaia e poucas pessoas estavam dispostas a percorrer dezenas de quilômetros subindo e descendo montanhas cobertas com cinco palmos de neve e dormir dentro de barracas em noite frias de 12 graus negativos. Eu desde o começo sabia que essa época não era a mais indicada para trekking naquela região, mas eu não queria de jeito nenhum voltar ao Brasil sem ter me iniciado nos cumes do Himalaia. Então fomos...

Dia 1
O primeiro dia foi uma viagem de carro de 8 horas enfrentando todo o caótico e barulhento trânsito indiano, somado á uma subida de 3 km para chegar à primeira base do acampamento. Meu joelho já chorava. Sempre tive costume de fazer trilhas, mas meu joelho é meu calcanhar de Aquiles. Ainda mais abusando da bagagem, já que há 27 dias eu carregava uma cargueira de 17 kg nas costas e uma ataque com 7 kg na frente.
A fantástica Cordilheira do Himalaia com o lago refletindo
a imponência dessas montanhas. Foto: Michelle Beralde
Para a minha alegria, o momento da chegada compensou toda dor e o esforço do primeiro dia de jornada. A paisagem era aquela dos meus sonhos: um lindo lago refletindo a imponente pre-cordilheira que ali começava com seus topos banhados em neve.
Posição privilegiada da nossa barraca. Foto: Michelle Beralde
O pôr do Sol foi incrível. A janta foi maravilhosa. Só que dormir não foi fácil. Para uma brasileira nata, nascida no trópico de capricórnio, 8 graus negativos durante a noite é um insulto ao meu limite de conforto. Dois sacos de dormir e dois cobertores não foram o suficiente. O desconforto do frio e da pedra de gelo sobre onde eu estava deitada, me impediram de sequer cochilar. Eis então que às 3h da manhã eu saio da barraca em busca de outro cobertor, saco de dormir ou qualquer outra coisa que me fizesse parar de sentir os ossos gelados. Foi aí, nesse momento, que fez valer toda a minha viagem.
A lua cheia iluminava diretamente o pico nevado das montanhas a minha frente, luz o suficiente para mostrar o desenho da neve e a sombra dos picos, mas ainda deixando espaço para as estrelas mostrarem brilho, formarem as linhas das constelações e deixar o rastro da via láctea. Era o cenário perfeito. Não sei o quanto tempo se passou enquanto eu olhava aquela paisagem, podiam ter sido segundos, ou minutos no tempo real, mas para mim, aquele momento durou anos-luz e atravessou gerações.
Chamei o Joshua e disse: ‘ Venha ver esse céu, está incrível’, ele, meu anjo da guarda – torto, resmungou um grunhido sonolento: ‘Tira um foto’. Foi o que fiz. Tentando equilibrar a Canon sem tripé nenhum, numa alta exposição, consegui, embaçadamente, tirar uma das minhas fotos preferidas, não pela qualidade, porque essa parte deixa bem a desejar, mas por tudo o que aquele eterno momento representou pra mim.
O tal mágico momento eternizado pela minha Canon Foto: Michelle Beralde
O frio me fez voltar à realidade e fui atrás de um dos dois guias.
No chão, vários cristaizinhos de gelo.
Encontrei os dois praticamente dormindo de conchinha com o cara que tomava conta do acampamento. Tudo questão de sobrevivência na noite gelada... talvez...
Eles me deram um saco de juta pra colocar embaixo do meu finíssimo isolante térmico de E.V.A. Toda torta de frio, voltei correndo pra minha barraca e lá encontro o Joshua num sono invejavelmente profundo e ainda com o braço sem blusa pra fora do cobertor. Queria muito ter a mesma resistência européia ao frio.


Tentei dormir.

(continua a semana que vem...)