De manhã: Chai!
Já tinha somado muitas noites
de pouco sono com toda a história do ônibus fantasma saindo de Delhi (um dia eu
conto essa historia de terror indiana), da noite de arrumação de mala pro
trekking em Rishikesh e da madrugada negativa no acampamento base um. Então mesmo após a deliciosa surpresa
estrelada da madrugada fria no primeiro dia, acordei moída. E pra dificultar já
comecei o dia com o joelho doendo.
Mas a cordilheira do Himalaia
estava ali toda banhada em neve, na minha frente, pronta para mais um dia de
trekking, forcei um bom humor e fui tomar café pra começar a desmontar a barraca.
O Joshua encontrou um casal de
alemães que estava alguns dias acampados por lá onde dormimos e pretendiam
também fazer a rota que nos levaria até o cume do Chowpta. Porém, segundo o
Joshua, eles começaram no dia anterior a trilha mas na metade do caminho,
voltaram. Começaram a ouvir um som de urso muito próximo a eles e, como estavam
sem guia, decidiram voltar e esperar alguns dias pra recomeçar.
Maud, Mimi,
Joshua e eu com tudo pronto pra subir.
Foto: Mogli e sua dificuldade em deixar
o horizonte na horizontal
E com essas palavras muito
motivadoras começamos a trilha do dia. Eu intercalava com Mimi, em ser a última
do grupo por conta do meu joelho dolorido. Mas como o meu mestre de
montanhismo, Flávio Berchez me ensinou: ‘Deixe a montanha ditar seu ritmo’ E
era o que eu estava fazendo e foi isso o que me fez chegar aos 4.100 metros de
altitude no ultimo dia.
Um dos guias era Bittu, que
apelidei de Mogli por conta da história que ele me contou de quando morou
sozinho na floresta dos 10 aos 11 anos de idade porque quis fugir da escola. Sobreviveu
todo esse tempo longe da civilização e se alimentando do que caçava e contou
com a ajuda de Shiva (Não, não é um cão, muito menos um lobo. Shiva é um dos
mais poderosos deuses do hinduísmo. Ele é o deus da destruição e quando
ele abrir o seu terceiro olho que fica no centro da testa, o mundo se destruirá!).
Bom, apesar dessa mirabolante historia, dava pra ver que ele era um homem da
montanha, tanto pela sua estrutura física, coragem e habilidades quanto pelo
brilho no olho dele toda vez que ele olhava para cima, em direção ao cume. Ele
foi a minha companhia principal. O alemão com toda sua disposição de iniciante
no montanhismo seguia como se estivesse disputando corrida com alguém, embora
eu dissesse pra ele ir mais devagar, porque não é bem assim que funciona em grandes
altitudes. Maud era experiente em montanhas e seguia atrás dele. Mimi já era
meio termo e o outro guia Shivam, que eu apelidei de Boss porque ele era o filho
do chefe da companhia de trekking, seguia morrendo devido a sua total falta de
condicionamento físico.
Eu fui no mesmo ritmo desde o
primeiro passo até o ultimo e na maioria do tempo ficava atrás, não me
importava e até preferia. E o Mogli me acompanhou a maior parte do tempo. Ele
me contou outras historias de como quando teve o coração partido por uma francesa e decidiu estudar para virar guru. Ele
disse que durante seu treinamento teve total dedicação, mas teve
que abandonar porque percebeu ser incapaz de controlar o segundo chakra, Svadhisthana.
Pra quem não sabe esse é o chakra sexual. Mogli disse que as estrangeiras
‘gostavam’ demais dele e ele tinha dificuldades em contrariá-las. Ele então
desistiu da vida celibata de guru e voltou a ser guia de montanha.
No total do segundo dia foram
16 km de subida e descida, subida e descida, subida e descida. Passamos por
abismos de mais de 2.000 metros de altura, pegadas de urso ‘frescas’, rios
congelados, águias brincando no céu e neve, muita neve. Não cruzamos com
nenhuma outra equipe. Ninguém. Nenhum outro ser humano.
Um lugar ao
Sol pro almoço. Mogli cozinhando um miojão no fogão improvisado com pedras.
Foto: Eu de novo
Depois de um breve descanso
durante o almoço, voltamos à rota. Tudo estava normal até começarmos a escutar
um barulho estranho muito próximo. Eu pensei com meus botões: ‘Nossa, coitado
desse cachorro, que será que deve estar havendo?’. Daí olhei pro lado e vi
Mogli, um típico indiano com uma típica cor indefinida de indianos, ficar
branco igual a neve que nos cercava. E ainda sem entender o que estava
acontecendo perguntei o que houve. Numa voz meio rouca Boss disse que era som
de urso. Na minha inocência eu achei super legal, mas o resto da galera não
gostou muito. Mogli disse que agora devíamos caminhar juntos no mesmo ritmo
para caso acontecesse alguma coisa, nós teríamos como intimidá-lo.
Nesse momento estávamos há
mais ou menos 3.000 metros de altitude, no meio de um mar de montanhas em neve
e longe um bocado de qualquer outro tipo de ser humano e estruturas que possam
parecer um hospital. Quando pensei nisso, deixei de achar divertido ter um urso
na nossa cola. Tratei de andar mais rápido.
Patinha
cuti-cuti do urso que estava na nossa cola. Foto: Michelle Beralde
Ainda eram 16 horas e o frio da Cordilheira começou a ganhar forças. Os guias nos chamaram e disseram que por conta da desfavorável temperatura e por questão de segurança tinham que cortar um pedaço do trajeto e iriam
contatar o motorista para irmos para um abrigo de montanha. Desviaríamos só um
pouco da nossa rota para chegar até a estrada de acesso. O único problema era o
carro chegar até lá, já que existia a possiblidade da estrada estar congelada e
o carro voar em um dos abismos. Por mais que eu tenha o espírito perrengueiro de aventureiros, o frio
extremamente desconfortável da noite anterior me fez desejar um pouco de calor.
Por fim, eles conseguiram
checar a estrada e contatar o motorista. E por volta das 17h30 estávamos indo
para o abrigo. O carro, um jeep Mahindra, muito usado na Índia, não estava
cheio, mas eu fiz questão de subir as escadinhas e ir na parte de cima do carro.
Pra mim uma das melhores
sensações é o vento batendo no rosto, costumo chamar de degustação de liberdade,
porque me sinto plena, realizada e ridiculamente feliz. Tipo a mesma coisa que
seu cachorro deve sentir quando põe a cabeça pra fora do carro de fica com a
língua de fora e olhos fechados.
Bom, talvez por instinto
masculino protetor, Joshua e Shivam também quiseram ir. O caminho foi curto,
mas intenso. Os rios invadiam a pista bem nas curvas e por conta do frio eles
viravam pistas de gelos. Bem nas curvas! E a cada uma delas era um frio na
barriga maior do que o da descida do barco Viking.
Eu, Joshua,
Boss e o Mahindra. Foto: Algúem com a Nikon do Joshua
Logo chegamos ao abrigo de
montanha. Era um lugar era bem rústico com aquele clima de lugar montanhesco,
como me gusta. A parede do quarto devia ter no mínimo meio metro de espessura
pra dar conta de não deixar o frio entrar, as camas tinham três colchões, que
juntos ficavam da mesma espessura da parede, e os cobertores eram quase da
espessura do colchão. Tudo velho, manchado e cheirando estranho, mas perfeito
para uma noite protegida de frio e de ursos. Bom, era o que eu pensava naquele
momento.
Paisagem
‘humilde’ da parte de trás do nosso abrigo. Foto: Michelle Beralde
Comemos em volta da fogueira
jogando baralho. Estava uns 7 graus negativos e as pessoas usavam muita roupa de
frio.
Eu não!
‘Muita roupa de frio’ não se encaixa na minha classificação. Eu estava vestindo todas as roupas que levei, roupas boas, roupas de montanha. Mais: um sobre-tudo de lã de yak que era de um dos guardas da casa (Boss, com pena da minha tremedeira, pediu para eles me emprestarem um), duas luvas, três meias, um gorro, dois cachecóis e óculos de Sol.
Sim, óculos de Sol!
Eu sentia que meus globos oculares iam congelar com o vento, decidi que seria então super sensato eu usar óculos de Sol as 21h da noite.
Eu não!
‘Muita roupa de frio’ não se encaixa na minha classificação. Eu estava vestindo todas as roupas que levei, roupas boas, roupas de montanha. Mais: um sobre-tudo de lã de yak que era de um dos guardas da casa (Boss, com pena da minha tremedeira, pediu para eles me emprestarem um), duas luvas, três meias, um gorro, dois cachecóis e óculos de Sol.
Sim, óculos de Sol!
Eu sentia que meus globos oculares iam congelar com o vento, decidi que seria então super sensato eu usar óculos de Sol as 21h da noite.
Depois de um tempo desisti de
fazer social e fui deitar debaixo dos cobertores-colchões. Tentei escrever um
pouco, mas não era fácil segurar a caneta com tantas camadas de lã envolvendo
meus dedos.
Deitei. Fechei o olho.
Respirei aquele ar de alívio e conforto. E ouvi um grunhido. Abri o olho. E lá
estava ele. Em cima do travesseiro do Joshua, há dois palmos do meu nariz. Um
rato.
Ainda não sei o que foi que o
fez desaparecer em 1 milésimo de segundo: o meu salto acrobático da cama ou o
meu grito super-sônico.
Saí do quarto berrando, com o coração batendo no céu da minha boca, chamando os meninos. Eles vieram mais que depressa e perguntaram o que tinha acontecido, e eu gaguejando no inglês (em horas de pânico parece que só sua língua nativa lhe cabe á boca) explique do rato e eles olharam pra mim, me analisando, pra ver se eu estava falando sério ou se era alguma pegadinha. Alguns segundos depois eles riram, riram alto como se eu tivesse contado uma piada vencedora de concurso.
Saí do quarto berrando, com o coração batendo no céu da minha boca, chamando os meninos. Eles vieram mais que depressa e perguntaram o que tinha acontecido, e eu gaguejando no inglês (em horas de pânico parece que só sua língua nativa lhe cabe á boca) explique do rato e eles olharam pra mim, me analisando, pra ver se eu estava falando sério ou se era alguma pegadinha. Alguns segundos depois eles riram, riram alto como se eu tivesse contado uma piada vencedora de concurso.
Abro aqui um parêntese:
Sim, eu sou bióloga, mas sou
mulher. Eu tenho aflição de ratos e pânico de baratas. Não me importo em tocar
em aranhas caranguejeiras, cobras peçonhentas, sapo, tigres, lagartos e
lagartixas, nem nenhum outro bicho também. Meu problema é com ratos e baratas.
Ah... tem carrapato também. Mas só esses três mesmo. Tudo bem que tem pessoas que não
se importam com ratos, como os quase um bilhão e meio de indianos desse planeta e os
europeus que estavam na expedição, mas quando se trata de uma ratazana no
travesseiro ao lado da sua cabeça, achei que um pequeno escândalo fosse justificável.
Fecho meu parêntese.
Bittu deu uma olhada de 5
segundos no quarto e falou que o rato foi embora, como um pai que fala pro
filho que não tem monstro nenhum debaixo da cama.
Dei uma olhada geral também,
bati nos móveis e tapei o buraco no chão que os indianos chamam de vaso
sanitário, fiz uma trincheira de travesseiros e capotei.
Acordei a noite com uma pedra
de gelo vindo deitar na cama. Acho que o Joshua estava com a mesma falta de
graus Celsius do que a noite lá fora e o coitado tremia que nem vara verde.
Depois de estabilizada a temperatura, conseguimos dormir.