sábado, 18 de maio de 2013

Dia três. O cume


Dia 3
De manhã: chai!
O frio estava intenso de manhã cedo. Acordamos ás 5h porque o dia de trekking seria longo e puxado, sairíamos dos mil e pouquinhos metros de altitude para chegar ao topo do Chowpta com seus 4.100 metros.
Meus joelhos começaram a doer muito logo de manhã, talvez pelo frio. Sim, agora eram os dois. Eles intercalam em atrapalhar minha vida aventura, e nessa manhã os dois estavam doloridos. Fiquei com vontade de chorar, não pela dor, por medo de não dar conta de subir. Porque esse era um dia muito esperado na minha vida e o mais esperado da viagem toda. Ia ser o cume mais alto que eu já teria conquistado até o momento e o dia do meu tão sonhado trekking na Cordilheira do Himalaia.
As francesas acordaram nesse momento me perguntaram o que acontecia. Eu expliquei bem simplificadamente e Maud lembrou-me uma frase que eu já ouvira varias vezes, principalmente do Flávio, meu querido professor de montanha. Ela me disse num inglês com o lindo sotaque francês: ‘Se você não conseguir subir, não tem problema, a montanha vai continuar por lá, outra vez você termina’.
Eu vesti a humildade que essa frase transmite, vesti também minha roupa de trekking e saí pra geladeira lá de fora.
Boss arregou, disse que acordou resfriado, mas na noite anterior dava pra perceber a exaustão do coitado. Ele não costumava muito fazer as trilhas, mas em janeiro ia pra Tailandia (quer dizer, queria ir, mas não foi) e talvez estivesse tentando ficar em forma. Não foi uma escolha sábia. Somente Mogli subiu conosco.
Fomos de carro até o local de saída. Tomamos mais um chai no dhaba* que tinha em frente e pé na estrada pra começar a subida.
No começo eram escadas e rampas de pedra, ambos bem acentuados, mas Mogli nos fazia ‘cortar caminho’ pra deixar tudo com mais emoção.
Começo da trilha. Foto: Michelle Beralde
Desde o primeiro passo eu ia pedindo ás entidades espirituais em que acredito pra que me ajudassem a não sentir dor e pra me levar ao cume. Pedi até ao todo poderoso Shiva de Mogli. Acredito que eles me ouviram. Depois de uma hora e meia de subida eu estava sem dor alguma, já um pouco ofegante, mas os joelhos estavam muito bem.
A subida era bem íngreme e o pior pra mim naquele dia era os três palmos de neve que eu e minha botinha singela da Quechua tivemos que encarar. Os europeus subiam de boa, deslizando na neve. Já eu parecia o pé grande andando na Lua. Foi um bom exercício pras panturrilhas pelo menos.
Daquelas fotos que você sempre sonhou em tirar e que um dia conseguiu realizar. Foto: Joshua Frank
Durante o caminho, algumas fotos e só duas ou três paradas para descansar. O trekking desse dia era bem diferente do anterior, onde a maioria do trecho era percorrida dentro da mata, nesse dia era só subida de uma montanha coberta de neve com os tufos de plantas teimosas que insistiam em crescer naquele lugar apesar das condições adversas.
Na India, como na Ásia em geral, a religião é o carro forte da cultura deles e nada faz sentido se não for conectado com o divino. Essa trilha que fazíamos, meus caros senhores, era feita desde os primórdios pelos monges indianos, tibetanos e nepaleses. Idosos de mais de 60 anos subiam e desciam grandes montanhas, sempre consideradas um lugar sagrado, para rezar, meditar e encontrar com o divino nos altos cumes.
Então durante o caminho cruzamos com vários templos dedicados a Shiva, muito consagrado naquela região. Diz a lenda que Shiva, que carregava o rio Ganges na sua cabeça, para proteger o mundo das cheias e para diminuir a força destrutiva do Rio, ele permitiu que o rio escorresse dos cabelos compridos dele. Os templos eram seculares e maravilhosos, a maioria era adornado de vermelho, cor poderosa como Ele, com vários sinos pendurados, flores laranjas e restos de frutas que eles oferecem aos deuses como oferenda, o Puja.
Ohm Namah Shiva! Templo de Shiva há muitos mil metros de altitute. Foto: Michelle Beralde
No templo maior paramos para descansar e receber uma benção de Mogli. Foi outro dos momentos mágicos dessa expedição. Ele nos fez reunir em círculo com as palmas das mãos unidas na altura do peito e repetíamos (ou tentávamos repetir) a oração que ele fazia em sânscrito. Depois do transe em que nos colocou, ele badalou o sino maior e nos fez voltar ao planeta Terra.
Queria eu carregar dentro de mim, pra onde quer que fosse, a paz que só encontro nas montanhas. Foto: Joshua Frank
Seguimos então para o trajeto final e depois do trecho mais íngreme de todos e de muitos palmos de neve, atingimos o cume por volta das 13 horas.
Trecho final. Eu, Mimi e Maud. Foto: Joshua Frank
Chegada ao cume. Foto: Eu mais uma vez
O alemão não estava bem, talvez pela falta de costume, ele sofreu bastante com mal de altitude. Chegou ao cume, deitou no chão sob o sol forte e apagou, só acordou pra tirar foto. Nós comemos uns chapattis, bolachinha com Nutella, tomamos chai, Mogli acendeu seu ‘incenso’ de Shiva do tamanho de um charuto e tiramos fotos.
 A alegria da conquista é uma sensação interessante. Você se sente completo por ter conquistado algo tão almejado, de difícil realização, sente um êxtase sem tamanho, sem definição, que toma seu corpo, mente e alma por completo. Mas eis que surgem dois problemas. Pelo menos pra mim, esse sentimento é viciante e efêmero. Pois é, depois de passado o efeito dessa droga na qual sou viciada, vem a precoce abstinência. Meu começo de descida já era planejando a próxima viagem, o próximo cume. Como farei pra chegar lá? Onde será? Quando será?
É, esse é um caminho sem volta e um vício que eu faço questão de nunca largar.
‘Jogando meu corpo no mundo.’ Foto: Joshua Frank
Na descida os europeus plainavam na neve, descendo rápido com pés de esqui enquanto eu estava com a roupa toda molhada de tanto cair na neve. Bom, foi razoável para uma primeira vez de trekking na neve...
Chegamos ao fim ás 15h e pouco, a descida foi bem rápida. Quando passei o arco que marcava o inicio da trilha, não consegui não chorar, o arco que algumas horas atrás eu passara no sentido contrario, super insegura, com imenso medo de meu corpo não acompanhar o desejo da minha mente.
Mas tudo deu certo, eu subi, eu desci, e acredito muito na ajuda metafísica que eu tive.
Voltamos para o abrigo de montanha para pegar as coisa e partir. Dormiríamos no hotel do restaurante onde almoçamos no primeiro dia de viagem. A ideia foi boa, pois o lugar era menos gelado e aparentemente mais confortável.
Na saída jogamos um pouco de cricket com os guardas do abrigo. Pra quem não sabe o cricket é pros indianos o que o futebol é para os brasileiros, a paixão nacional.
‘Pelada de Cricket’ Foto: Michelle Beralde com as mãos congelando de frio
Chegamos ao hotel já estava escuro, entramos no quarto. Quarto bonitinho, pintadinho de amarelo, cortinas bonitas, poltronas de almofada, penteadeira, chuveiro quente (não sabia o que era isso desde que saí de Rishikeshi), tudo perfeitinho se não fosse por um ‘detalhe’: o quarto estava salpicado de coco de rato. Parecia que moravam todos os ratos do mundo naquele quarto. Era coco em cima da cama, do travesseiro, da cortina, da poltrona, no chão, debaixo da cama, em cima da mesinha, da penteadeira. Alguém devida ter enchido um saleiro gigante de bosta de rato e jogado naquele hotel. Eu desacreditei.  A camada de ‘chocolate granulado’ cobria o quarto todo. E eu não estou exagerando dessa vez.
O meu cansaço me impediu de protestar, sacudi a colcha, fui tomar um banhozinho e comer....
Fomos jantar, de sobremesa: chá de gengibre com mel pra tirar o resfriado. E depois de cumprida minha cota diária de socialização, fui pro quarto. Assim que eu abri a porta duas ratazanas gigantes cruzaram o quarto procurando refugio em algum lugar. Dessa vez, fui calmamente falar com os guias (mentira, surtei de novo de susto). Joshua veio pra me ajudar, pedi pra ele pelo menos tirar os ratos do quarto. Ele entrou olhou, disse que não tinha rato nenhum. Eu, de pé cima da poltroninha, falava que tinha rato lá dentro. Ele não achou e ainda quis tirar uma foto do momento, que para ele estava sendo cômico.
Eu, como uma dama que sou, desci da poltrona e dei uma bica gigante na cama que fez estremecer o quarto. Daí os infelizes saíram de lá e ainda por cima um deles passou em cima da minha bota. E eles estavam indignados comigo por ter nojo de rato e eu com eles por eles não terem. Perguntei pra francesa se ela REALMENTE não se importava com os ratos e ela disse que não, que cresceu na fazenda e o quarto dela vivia cheio deles.
A manha de uma menininha com sono tomou conta do meu ser e disse pra eles que eu não ia dormir lá. Pedi pra domir no jeepe, eles não deixaram porque disseram que faz muito frio . Disseram que iam trocar eu o Joshua de quarto. Fomos pro quarto ao lado, mas estava a mesma coisa só que piorada. Disse pra voltarmos pro mesmo quarto porque lá pelo menos eu tinha visto que os ratos tinham saído. Se não fosse pelo cansaço extremo eu jamais teria conseguido dormir aquela noite. Cobri todas as entradas com as almofadas das poltronas, peguei o saco de dormir, me encapotei toda deixando só o espaço do buraco do nariz para efetuação das tão necessárias trocas gasosas, fiz novamente minha trincheira de travesseiros em volta da minha cabeça, dessa vez maior e antes de colocar a cabeça no travesseiro, dormi.
O ataque dos ratos assassinos. Foto: Obviamente, Joshua