segunda-feira, 29 de abril de 2013

Segundo dia. Da neve, do urso e do rato

Dia 2
De manhã: Chai!

Já tinha somado muitas noites de pouco sono com toda a história do ônibus fantasma saindo de Delhi (um dia eu conto essa historia de terror indiana), da noite de arrumação de mala pro trekking em Rishikesh e da madrugada negativa no acampamento base um.  Então mesmo após a deliciosa surpresa estrelada da madrugada fria no primeiro dia, acordei moída. E pra dificultar já comecei o dia com o joelho doendo.
Mas a cordilheira do Himalaia estava ali toda banhada em neve, na minha frente, pronta para mais um dia de trekking, forcei um bom humor e fui tomar café pra começar a desmontar a barraca.
O Joshua encontrou um casal de alemães que estava alguns dias acampados por lá onde dormimos e pretendiam também fazer a rota que nos levaria até o cume do Chowpta. Porém, segundo o Joshua, eles começaram no dia anterior a trilha mas na metade do caminho, voltaram. Começaram a ouvir um som de urso muito próximo a eles e, como estavam sem guia, decidiram voltar e esperar alguns dias pra recomeçar.
Maud, Mimi, Joshua e eu com tudo pronto pra subir.
Foto: Mogli e sua dificuldade em deixar o horizonte na horizontal

E com essas palavras muito motivadoras começamos a trilha do dia. Eu intercalava com Mimi, em ser a última do grupo por conta do meu joelho dolorido. Mas como o meu mestre de montanhismo, Flávio Berchez me ensinou: ‘Deixe a montanha ditar seu ritmo’ E era o que eu estava fazendo e foi isso o que me fez chegar aos 4.100 metros de altitude no ultimo dia.
Um dos guias era Bittu, que apelidei de Mogli por conta da história que ele me contou de quando morou sozinho na floresta dos 10 aos 11 anos de idade porque quis fugir da escola. Sobreviveu todo esse tempo longe da civilização e se alimentando do que caçava e contou com a ajuda de Shiva (Não, não é um cão, muito menos um lobo. Shiva é um dos mais poderosos deuses do hinduísmo. Ele é o deus da destruição e quando ele abrir o seu terceiro olho que fica no centro da testa, o mundo se destruirá!). Bom, apesar dessa mirabolante historia, dava pra ver que ele era um homem da montanha, tanto pela sua estrutura física, coragem e habilidades quanto pelo brilho no olho dele toda vez que ele olhava para cima, em direção ao cume. Ele foi a minha companhia principal. O alemão com toda sua disposição de iniciante no montanhismo seguia como se estivesse disputando corrida com alguém, embora eu dissesse pra ele ir mais devagar, porque não é bem assim que funciona em grandes altitudes. Maud era experiente em montanhas e seguia atrás dele. Mimi já era meio termo e o outro guia Shivam, que eu apelidei de Boss porque ele era o filho do chefe da companhia de trekking, seguia morrendo devido a sua total falta de condicionamento físico.
Eu fui no mesmo ritmo desde o primeiro passo até o ultimo e na maioria do tempo ficava atrás, não me importava e até preferia. E o Mogli me acompanhou a maior parte do tempo. Ele me contou outras historias de como quando teve o coração partido por uma francesa e decidiu estudar para virar guru. Ele disse que  durante seu treinamento teve total dedicação, mas teve que abandonar porque percebeu ser incapaz de controlar o segundo chakra, Svadhisthana. Pra quem não sabe esse é o chakra sexual. Mogli disse que as estrangeiras ‘gostavam’ demais dele e ele tinha dificuldades em contrariá-las. Ele então desistiu da vida celibata de guru e voltou a ser guia de montanha.
No total do segundo dia foram 16 km de subida e descida, subida e descida, subida e descida. Passamos por abismos de mais de 2.000 metros de altura, pegadas de urso ‘frescas’, rios congelados, águias brincando no céu e neve, muita neve. Não cruzamos com nenhuma outra equipe. Ninguém. Nenhum outro ser humano.
Um lugar ao Sol pro almoço. Mogli cozinhando um miojão no fogão improvisado com pedras. Foto: Eu de novo

Depois de um breve descanso durante o almoço, voltamos à rota. Tudo estava normal até começarmos a escutar um barulho estranho muito próximo. Eu pensei com meus botões: ‘Nossa, coitado desse cachorro, que será que deve estar havendo?’. Daí olhei pro lado e vi Mogli, um típico indiano com uma típica cor indefinida de indianos, ficar branco igual a neve que nos cercava. E ainda sem entender o que estava acontecendo perguntei o que houve. Numa voz meio rouca Boss disse que era som de urso. Na minha inocência eu achei super legal, mas o resto da galera não gostou muito. Mogli disse que agora devíamos caminhar juntos no mesmo ritmo para caso acontecesse alguma coisa, nós teríamos como intimidá-lo.
Nesse momento estávamos há mais ou menos 3.000 metros de altitude, no meio de um mar de montanhas em neve e longe um bocado de qualquer outro tipo de ser humano e estruturas que possam parecer um hospital. Quando pensei nisso, deixei de achar divertido ter um urso na nossa cola. Tratei de andar mais rápido.
Patinha cuti-cuti do urso que estava na nossa cola. Foto: Michelle Beralde

Ainda eram 16 horas e o frio da Cordilheira começou a ganhar forças. Os guias nos chamaram e disseram que por conta da desfavorável temperatura e por questão de segurança tinham que cortar um pedaço do trajeto e iriam contatar o motorista para irmos para um abrigo de montanha. Desviaríamos só um pouco da nossa rota para chegar até a estrada de acesso. O único problema era o carro chegar até lá, já que existia a possiblidade da estrada estar congelada e o carro voar em um dos abismos. Por mais que eu tenha o espírito perrengueiro de aventureiros, o frio extremamente desconfortável da noite anterior me fez desejar um pouco de calor.
Por fim, eles conseguiram checar a estrada e contatar o motorista. E por volta das 17h30 estávamos indo para o abrigo. O carro, um jeep Mahindra, muito usado na Índia, não estava cheio, mas eu fiz questão de subir as escadinhas e ir na parte de cima do carro.
Pra mim uma das melhores sensações é o vento batendo no rosto, costumo chamar de degustação de liberdade, porque me sinto plena, realizada e ridiculamente feliz. Tipo a mesma coisa que seu cachorro deve sentir quando põe a cabeça pra fora do carro de fica com a língua de fora e olhos fechados.
Bom, talvez por instinto masculino protetor, Joshua e Shivam também quiseram ir. O caminho foi curto, mas intenso. Os rios invadiam a pista bem nas curvas e por conta do frio eles viravam pistas de gelos. Bem nas curvas! E a cada uma delas era um frio na barriga maior do que o da descida do barco Viking.
Eu, Joshua, Boss e o Mahindra. Foto: Algúem com a Nikon do Joshua

Logo chegamos ao abrigo de montanha. Era um lugar era bem rústico com aquele clima de lugar montanhesco, como me gusta. A parede do quarto devia ter no mínimo meio metro de espessura pra dar conta de não deixar o frio entrar, as camas tinham três colchões, que juntos ficavam da mesma espessura da parede, e os cobertores eram quase da espessura do colchão. Tudo velho, manchado e cheirando estranho, mas perfeito para uma noite protegida de frio e de ursos. Bom, era o que eu pensava naquele momento.
Paisagem ‘humilde’ da parte de trás do nosso abrigo. Foto: Michelle Beralde

Comemos em volta da fogueira jogando baralho. Estava uns 7 graus negativos e as pessoas usavam muita roupa de frio.
Eu não!
‘Muita roupa de frio’ não se encaixa na minha classificação. Eu estava vestindo todas as roupas que levei, roupas boas, roupas de montanha. Mais: um sobre-tudo de lã de yak que era de um dos guardas da casa (Boss, com pena da minha tremedeira, pediu para eles me emprestarem um), duas luvas, três meias, um gorro, dois cachecóis e óculos de Sol.
Sim, óculos de Sol!
Eu sentia que meus globos oculares iam congelar com o vento, decidi que seria então super sensato eu usar óculos de Sol as 21h da noite.
Depois de um tempo desisti de fazer social e fui deitar debaixo dos cobertores-colchões. Tentei escrever um pouco, mas não era fácil segurar a caneta com tantas camadas de lã envolvendo meus dedos.
Deitei. Fechei o olho. Respirei aquele ar de alívio e conforto. E ouvi um grunhido. Abri o olho. E lá estava ele. Em cima do travesseiro do Joshua, há dois palmos do meu nariz. Um rato.
Ainda não sei o que foi que o fez desaparecer em 1 milésimo de segundo: o meu salto acrobático da cama ou o meu grito super-sônico.
Saí do quarto berrando, com o coração batendo no céu da minha boca, chamando os meninos. Eles vieram mais que depressa e perguntaram o que tinha acontecido, e eu gaguejando no inglês (em horas de pânico parece que só sua língua nativa lhe cabe á boca) explique do rato e eles olharam pra mim, me analisando, pra ver se eu estava falando sério ou se era alguma pegadinha. Alguns segundos depois eles riram, riram alto como se eu tivesse contado uma piada vencedora de concurso.

Abro aqui um parêntese:
Sim, eu sou bióloga, mas sou mulher. Eu tenho aflição de ratos e pânico de baratas. Não me importo em tocar em aranhas caranguejeiras, cobras peçonhentas, sapo, tigres, lagartos e lagartixas, nem nenhum outro bicho também. Meu problema é com ratos e baratas. Ah... tem carrapato também. Mas só esses três mesmo. Tudo bem que tem pessoas que não se importam com ratos, como os quase um bilhão e meio de indianos desse planeta e os europeus que estavam na expedição, mas quando se trata de uma ratazana no travesseiro ao lado da sua cabeça, achei que um pequeno escândalo fosse justificável.
Fecho meu parêntese.

Bittu deu uma olhada de 5 segundos no quarto e falou que o rato foi embora, como um pai que fala pro filho que não tem monstro nenhum debaixo da cama.
Dei uma olhada geral também, bati nos móveis e tapei o buraco no chão que os indianos chamam de vaso sanitário, fiz uma trincheira de travesseiros e capotei.
Acordei a noite com uma pedra de gelo vindo deitar na cama. Acho que o Joshua estava com a mesma falta de graus Celsius do que a noite lá fora e o coitado tremia que nem vara verde. Depois de estabilizada a temperatura, conseguimos dormir.

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